O inesperado processo de luto

Quem me conhece sabe o quanto amo Goiás. E quem me conhece um pouco mais sabe como eu amo música. Não é a toa que a publicação mais acessada deste abandonado blog é o Cantos de Goiás: 13 músicas para aflorar seu lado goiano.

Na lista não trago os sucessos da música sertaneja, nunca foi meu gênero favorito. Mas vivendo em Goiânia é IM-POS-SÍ-VEL você não ouvir sertanejo (o universitário, o clássico, o dos anos 90/2000). Portanto, é claro que eu ouvi Marília Mendonça (os cantores homens também, mas fazendo parte de uma indústria musical era fácil demais não saber diferenciá-los).

Foi no Carnaval de 17, depois de um sandubão na praça Roosvelt, e caindo DO NADA num bloquinho por ali, é que senti na pele a força de Marília. Era claramente um bloquinho com toda aquela diversidade millenial, pegação despreocupada pré-pandemia, e milhares de pessoas cantando Infiel a plenos pulmões. Mas bem, eram tantos hits aquele ano né? Teve Todo Dia, com Rico e Pabllo, 50 reais, da Naiara Azevedo, Loka, da Anitta…

Bem, o fato é, apesar de uns refrões e uma live em 2020, que não tive tanta ligação com Marília. Por isso, o baque por sua partida veio com surpresa. Susto, alívio e aperto, tudo em menos de uma hora. Para somar, fui tomada pela emoção das(os) conterrâneas(os) e cantoras(es) que compartilhavam suas homenagens.

Já conhecia o poder de Marília: ela trouxe uma graça diferente para o sertanejo. Ultrapassava o ar de boa moça da Paula Fernandes, marcou seu tempo como (talvez mais que) Roberta Miranda. Abriu portas para outras cantoras e percepções para um sertanejo que persistia em uma fórmula batida sobre o olhar masculino de relacionamentos abusivos ou ostentação sem sentido.

Mas isso não é uma crítica musical. É meu breve relato sobre como a passagem de Marília Mendonça me provocou um luto inesperado.

Precisei regressar ao livro A morte é um dia que vale a pena viver, da Ana Cláudia Quintana Arantes, porque as emoções estavam confusas. O que é especialmente diferente é que não me comovo com mortes, elas são naturais e apesar da dor que envolve o luto, dificilmente é algo que me impactava.

Não tive reação parecida à partida de Paulo Gustavo, por exemplo, que também teve um importante componente de representatividade para “meu povo” (kkk) – talvez pela morte anunciada desde sua internação. E o aperto no meu peito, a ansiedade que me acompanhou durante a noite eram claros sinais de que esta morte de Marília me comoveu.

A leitura de Ana Cláudia traz alento:

“Não existe a possibilidade de haver uma morte absoluta, de desintegração de todas as dimensões de um ser humano cuja existência teve algum sentido na vida de outros seres humanos. Quando a morte acontece, ela só diz respeito ao corpo físico.” (p. 177)

Por coincidência, no início da semana li este mesmo trecho para minha avó, quando falávamos sobre a morte de meu vô – em ocasião do dia de finados. As palavras foram ressignificadas com a partida de alguém que não era nada próxima da minha convivência. Lembrei do livro porque em determinado momento ela fala sobre os processos para lidar com os lutos, até mesmo das pequenas mortes (se referindo aos divórcios, demissões, rompimentos… e que ressignifiquei para o pequeno luto da perda de Marília):

“As pequenas mortes talvez sejam as mais dramáticas porque continuamos plenamente conscientes do que está acontecendo depois que acontecem. Entregar-se a essa dor é o melhor jeito de deixá-la ir embora. (…) Viva o luto dessa perda. Viva, experimente essa dor, não fuja, não minimize covardemente aquilo que foi vivido” (p. 163)

A verdade é que não vivi nada muito profundo com Marília, e talvez daí o luto inesperado. O fato é que me entreguei à dor – mesmo não chorando. Vivendo plenamente as emoções e sensações que vinham à mente e ao corpo. Para a fala, transformei a vivência do luto nesta publicação, de um blog capenga (mas ainda vivo!).

A sabedoria de Ana merece ser retomada a cada nova morte. Além da compaixão de quem se dedica ao morrer com dignidade, o livro apresenta reflexões tocantes sobre a naturalidade e aceitação da morte (a nossa e das(os) outras(os)). À poesia de Marília, que não está tão próxima das minhas referências, eu volto para lembrar de casa, das mulheres da minha terra e, principalmente, para uma mulher que deixou sua marca na música brasileira.

Viva Marília!